10/05/2023
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Por que brasileiros estão abrindo restaurantes em Portugal?
Pelo quinto ano consecutivo, o número de brasileiros morando em terras lusas cresceu. São 209.072, segundo dados do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) de Portugal, que desconsidera habitantes com dupla cidadania e imigrantes sem autorização de residência. Esses milhares de brasileiros em Lisboa, Porto e Setúbal – para citar os três principais destinos de migração – estão transformando os negócios do outro lado do Atlântico. Escritórios, canteiros de obras, hospitais, escolas de idiomas e universidades já sentem o efeito Brasil. Nessa onda, claro, a gastronomia não poderia ficar de fora. É grande o número de brasileiros em Portugal que abrem restaurantes.
Os dados mais recentes de empreendedorismo estrangeiro em Portugal são de 2011, e apontam os setores de hospitalidade e restauração como o mais ativo entre os empresários brasileiros (21,3%), seguido de comércio atacado e varejista (14,3%) e construção civil (13,3%). A título de comparação, os chineses, que são a segunda maior presença de estrangeiros empreendedores, atuam majoritariamente em comércio (84%), tendo a hospitalidade e restauração em segundo lugar (13,8%).
Falar o mesmo idioma ajuda os brasileiros a "desenrolarem" no atendimento, mas o estilo de serviço é o que se destaca. Em bares e restaurantes, a maneira de atender conquista os portugueses e turistas, bem como a criatividade para montagem de cardápios e execução de pratos contemporâneos e clássicos.
"O garçom brasileiro é mais amigável e flexível. Ele vai fazer de tudo para atender bem. Se a retirada do pedido é no balcão, mas o cliente não entendeu, ele faz questão de levar até a mesa", exemplifica Dudu Sperandio, chef e sócio-proprietário do restaurante Ernesto e da pizzaria Funiculare, em Curitiba.
No final da década de 2000, o chef trabalhou em restaurantes da Itália, Inglaterra, Portugal, Espanha, França, Suíça e Holanda, até voltar para o Brasil e abrir seu primeiro estabelecimento em 2011. Desde então, abrir um restaurante na Europa sempre foi um sonho para Dudu. Em 2021, veio a conquista: a Funiculare ganhou uma segunda unidade no distrito de Cheleiros, na região de Lisboa.
Eles foram atraídos por um convite oficial da vinícola Manzwine, que demonstrou o interesse em contratar um serviço estrangeiro, uma ação que permite que seja fechado negócio com qualquer prestador de serviço de países da Europa ou de língua portuguesa. Com a burocracia em dia, Dudu e sua irmã Ana Vitória Sperandio, sócios da operação no Brasil e também no além-mar, fizeram um investimento para montar o restaurante junto de uma adega da marca portuguesa.
Burocracias e vantagens
O convite oficial é uma maneira de empreender em Portugal sem precisar residir no país. Sem migrar, o estrangeiro que quiser empreender precisa ter um investimento mínimo e um plano de negócios detalhado para mostrar a importância econômica de sua operação para a economia do país.
No caso de quem já reside em Portugal, os trâmites são mais simples. Com a autorização de residência em andamento (o processo costuma ser longo) ou em mãos, emite-se o Número de Identificação Fiscal (NIF), equivalente ao CPF, e pede-se uma empresa singular (incluindo o tipo de registro equivalente ao MEI no Brasil) ou coletiva (sociedades).
Diferentemente dos demais países europeus, o sistema de regularização de imigrantes em Portugal permite que quem entrou como turista no país e permaneceu morando e trabalhando possa solicitar a concessão de autorização de residência. A facilitação da permanência de estrangeiros veio de uma mudança de regra em 2007, quando o país incluiu um título de entrada específico para empreendedores e uniformizou os títulos distribuídos a estrangeiros, concedendo autorizações de residência por diferentes motivos, desde trabalho independente à atividade empresarial.
Das vantagens do mercado português: o valor mais acessível para a compra de um ponto. Na foto, o salão do pequeno Genuíno, na cidade de Porto| Divulgação
O setor de restaurantes em Portugal tem um regime simplificado de tributação, em que empreendimentos que faturam menos de 200 mil euros pagam um imposto sobre o lucro presumido com base em um fator pré-determinado. Em alguns casos, o imposto sobre valor acrescentado (IVA) também é reduzido para alimentos e bebidas não alcoólicas.
A compra de um ponto, chamado de trespasse, também costuma ter um valor mais acessível se comparado ao Brasil. "Nós compramos o ponto de um lugar pequeno, no centro de Porto, por 45 mil euros", relata Gabriela Johann, cozinheira que se mudou para Portugal em 2021 para acompanhar o marido, Gustavo Schmidt, que migrou para cursar uma pós-graduação. O valor pago pelo trespasse é próximo à renda anual média de um casal na região. "Investimos mais 20 mil euros, retirados das nossas economias, para reformar e comprar equipamentos", diz Gabriela.
Abrir um bar não era o plano de Gabriela e Gustavo a curto prazo, mas os ventos sopraram a favor da dupla quando completaram um ano em Portugal. Em junho de 2022, eles abriram as portas do Genuíno, um misto de bar e restaurante com foco em vinhos naturais europeus e pratos para compartilhar. Além dos ingredientes da época, a inspiração da chef para o cardápio semanal não tem regras: pode ser mediterrâneo, asiático, brasileiro, uma receita de um filme ou livro, ou até de uma memória de viagem da chef.
Assim como boa parte dos brasileiros em setores como tecnologia e serviços, as lacunas de mercado motivaram o casal a investir. A cidade do Porto conta com adegas e bares de vinhos naturais, mas a gastronomia não estava atrelada tão fortemente nesses estabelecimentos. Em vez de concorrência, Gabriela e Gustavo encontraram incentivo e uma rede com quem contar.
Diferenças na língua
Com uma gastronomia rica e reconhecida no mundo todo, Portugal é mais tradicional em conceito de cardápio e propostas de serviço. "Os portugueses que trabalharam conosco na reforma do imóvel não entendiam muito bem o que nós iríamos abrir, se era um bar ou restaurante. Eles acharam que não ia dar muito certo", comenta Gabriela.
Deu tão certo que pouco mais de seis meses depois, o Genuíno ganhou uma companheira: a Generosa Pizzaria, aberta na porta ao lado e tocada pelo padeiro e pizzaiolo Jorge Mariano. Depois de passar pela padaria Maçã e pela pizzaria Madá, Jorge migrou de Curitiba para o Porto para assumir a Generosa, em que prepara pães de fermentação natural e pizzas ao estilo napolitano para os clientes comerem na rua.
As pizzas de brasileiros, aliás, são um sucesso na terrinha, pela boa execução técnica da massa e cobertura. "Se aqui um cardápio com 15 sabores de pizza é considerado enxuto, em Portugal seria extenso. Lá as pizzarias trabalham no máximo com 12 sabores, o que é considerado muito", compara Dudu Sperandio. Das diferenças mais evidentes entre fazer pizza no Brasil ou em Portugal, Dudu destaca a preferência dos portugueses por sabores com abacaxi, e o frescor dos ingredientes importados da Itália, especialmente a farinha, o tomate napolitano e a muçarela fior di latte.
Os negócios se encontram em regiões turísticas de Portugal - Cheleiros, próximo a Lisboa, tem alto fluxo de estrangeiros em viagens a lazer, dos quais muitos são brasileiros. "Toda semana tem algum brasileiro na nossa pizzaria. E já tivemos um casal alemão que decidiu viajar até Cheleiros para provar a pizza brasileira, da qual ouviram falar muito bem", orgulha-se Dudu. Clássicas, como Margherita, e sabores já tradicionais, como pera e nozes, estão sempre em produção, mas também há espaço para brigadeiro na sobremesa.
Salão da pizzaria Funiculare no distrito de Cheleiros, região de Lisboa| Arquivo pessoal/Dudu Sperandio
Em Porto, mais ao norte do país, a cidade tem uma população multicultural além do fluxo turístico. "Nosso principal consumidor são os imigrantes brasileiros e pessoas em intercâmbio cultural. Na cidade há muitos americanos, alemães, turcos… tem gente de toda parte do mundo", relata Gabriela.
À mesa, taças de tintos, brancos e rosés naturais e espumantes pét-nat são servidas com combinações como polenta frita com alho e ervas, molho de tomate e queijo cremoso de ovelha; atum fresco, babaganush, coalhada e sumagre; ou ainda sanduíche de frango empanado em flocos de milho, picles, maionese com mostarda dijon e molho sweet chilli. Feijoada e caipirinha também são destaque do cardápio do Genuíno de tempos em tempos.
Atum fresco com coalhada, babaganush e sumagre, do Genuíno Porto| Reprodução/Instagram .porto
Contribuição dos imigrantes
Portugal tem 10,3 milhões de habitantes, dos quais cerca de 714 mil são imigrantes. Desde 1991, são os brasileiros que lideram entre os que mais empregam no país. Em 2011 chegou a representar 30%, seguido da China (13%), e no último relatório do Alto Comissariado para as Migrações, os brasileiros em Portugal empregavam 26,7% dos trabalhadores em terra portuguesa, seguidos pelos chineses (16%).
Desde o início da década de 1990, dados mostram que os imigrantes em Portugal estão majoritariamente em posição de empregadores, e não empregados. A tendência de crescimento é registrada há quatro décadas, mas teve uma guinada a partir de 2009, quando foi lançado o Projeto Promoção do Empreendedorismo Imigrante. Se em 1981 os empregadores estrangeiros eram pouco mais de 1.800, de nacionalidades europeias, em 2011 eram mais de 23,5 mil, vindos principalmente do Brasil e China.
Como resultado, estrangeiros revitalizaram ruas comerciais, inseriram novos produtos no mercado e novas estratégias de marketing, além de trazerem mais para perto relações comerciais com novos países, segundo o estudo "Empregadores e empreendedores imigrantes: tipologia de estratégias empresariais", publicado em 2019 pela Secretaria de Estado para a Cidadania e a Igualdade de Portugal.
Devido a acordos internacionais entre Portugal e Brasil, os brasileiros têm direitos iguais aos dos residentes nativos em serviços públicos, tais como hospitais e escolas, e em direitos trabalhistas, como seguro-desemprego e aposentadoria. Após um determinado período morando em Portugal, brasileiros podem solicitar dupla cidadania.
Apenas em 2021, os estrangeiros contribuíram com 1,2 bilhão de euros com a Previdência do país, e a taxa de desemprego de 6,1% foi a mais baixa dos últimos 20 anos. Com uma população envelhecida e jovens portugueses migrando para encontrar melhores salários em outros países da Europa, o fluxo de forasteiros empreendedores vem a calhar.