13/08/2022
“O Baião é árabe”, teria dito Gilberto Gil, tentando sinalizar para o mundo que a Andaluzia islâmica e Exu, Pernambuco, têm mais coisas em comum do que se poderia imaginar. Na realidade, nunca escutei isso direto da boca do Gil — e olhe que já cansei de procurar na internet. Ouvi essa frase em um vídeo do músico Daniel Daibem, no qual ele atribui ao baiano a frase do começo deste texto [1]. Essa afirmação nunca saiu da minha cabeça.
Algodão (al-qutun), azulejo (al-juleij), sofá (suffa), Maluf, Said, Hatoum, Temer, Haddad, Abib, Farkatt, Safra. Não se pode negar o papel dos árabes na língua portuguesa; em São Paulo, sua política, suas avenidas, seus bancos. O Brasil possui 12 milhões de árabes e descendentes, a maioria de origem libanesa e síria, como os donos dos conhecidos sobrenomes políticos citados [2]. No entanto, faz sentido dizer que a representação estética mais poderosa e definitiva da influência árabe no Brasil preto, pobre, distante e seco é o baião do Nordeste, de Luiz Gonzaga.
Há algo de misterioso que aproxima o canto de aboio dos vaqueiros do Nordeste brasileiro às procissões do chamado de oração dos muezins das mesquitas e a Haje anual à Meca. Todo nordestino devoto do Padim Ciço tem que visitar seu santuário em Juazeiro do Norte — ele é a quarta figura da santíssima trindade dos sertanejos, como catequizou um jovem Belchior,
em 1974, no intimista Ensaio da TV Cultura [3].
Anualmente, milhões de islâmicos do mundo inteiro refazem os passos do seu profeta Maomé em sua “romaria”. Essas coincidências não são diretamente causais, obviamente, mas se apresentam como demonstrações simbólicas preponderantes na investigação dos resíduos mouros, árabes e judaicos que choveram no chão do Nordeste.
Como os tambores árabes e as violas do Oriente Médio chegaram ao Nordeste e influenciaram gerações e gerações de músicos em Bodocongó, Juazeiro, Cabrobó e outros cantões é a questão-chave desta discussão. É fato que as origens e o desenvolvimento dessa hibridização musical é pouco explorada na mitologia brasileira, nos seus romances, na sua historiografia. Também é verdade que um povo sempre está a olhar para si: reflete e quer se apossar das suas heranças remotas, ter noção da fundura de suas raízes.
Para o nordestino, a música é a expressão maior da sua cultura. É a partir dela que se reafirma a indumentária da região; e é nela que repousa o acalento frente às dificuldades. Trata-se da força-motriz da resistência à estigmatização horrenda. Por fim, na arte de Luiz Gonzaga, de seus letristas e também dos seus sucessores é onde moram os principais afetos de orgulho acerca da identidade, das origens e das aspirações futuras das pessoas do Nordeste, em especial as mais subjugadas à condição de brasileiros menores.
A teoria de como tudo isso se deu é até bem estabelecida. No século VIII, a Península Ibérica foi conquistada por árabes do Norte da África. O domínio mouro do Califado Omíada sobre a então Al-Andalus (Andaluzia) durou quase oito séculos e marcou para sempre a história dos reinos ibéricos, os quais somente viriam reconquistar a região no fim do século XV. Tantos
anos de constante conflito armado e religioso fizeram com que grande parte da expressão cultural de Portugal e Espanha fossem fundidos em poemas e romances de cavalaria — canções de trovadores que narram, principalmente, as batalhas entre mouros e cristãos. Muito do místico desses dois países nasce daí. E assim, por uma consequência ferrenhamente colonial, uma fração imensurável da cultura nordestina tem como semente a ibéria islâmica medieval.
O cancioneiro romântico medieval, tingido à tradição dos árabes andaluzes islâmicos e judeus, encontrou, provadamente, morada no Nordeste brasileiro. “A Música árabe veio roçar com sua asa de fogo os cantares do nosso Romanceiro, assim como os toques das nossas violas e rabecas, teriam sido o mesmo dos judeus cristãos-novos que para cá vieram, trazendo nas cordas de seus instrumentos e nas de suas gargantas as coplas, xácaras e romances
cantados em ladino.” [4] Esse trecho de Ar**no Suassuna, na apresentação de “As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino”, do catalão Luis Soler, sintetiza com uma elegância literária que lhe é típica o que, segundo o próprio Suassuna, seriam apenas “intuições de um escritor” [4].
O catalão Luis Soler [5], professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), quando chegou ao Recife, foi capaz de se surpreender ao ver, com seu olhar estrangeiro, similitudes entre as musicalidades sertaneja (conceito anterior ao gênero musical sertanejo pop de hoje) e a Ibérica. A rabeca (instrumento parecido com um violino) foi o signo primeiro que despertou
a sua contemplação: há rabequeiros nos dois continentes, que se expressam de maneira incrivelmente semelhante. Repentistas, violeiros, poetas e romanceiros são, para ele, os portadores legítimos, mesmo que sem noção direta disso, das tradições milenares dos beduínos do deserto.
Os sefarditas (judeus ibéricos), fugidos das fogueiras da inquisição espanhola e da conversão compulsória em Portugal, foram os mais importantes transportadores das raízes árabes para o Nordeste. Emigraram especialmente para o Recife holandês, onde podiam praticar a fé judaica. Após o fim do domínio dos holandeses e a volta da inquisição aos hereges, os judeus
pernambucanos, outrora membros influentes da sociedade recifense do século XVII, fugiram ao interior distante de Pernambuco. Nos rincões do semi-árido, fixaram-se e, como cripto-judeus, ou seja, às escondidas, preservaram tradições sefaraditas. Assim, os resíduos ibéricos, que, em suma, podem ser entendidos como fundamentalmente árabes e judaicos, embrenharam-se para sempre nas tradições sertanejas, em uma dinâmica sem volta de caldeamento cultural.
No início do século XIX, foram trazidos ao Brasil negros da etnia haussá: islâmicos que foram escravizados pela jihad promovida pelo Califado de Sokoto, na África subsaariana, e posteriormente vendidos a comerciantes de escravos. Eram pretos letrados no árabe, andavam com o alcorão em patuás de couro e que, quando foram submetidos à conversão forçada ao cristianismo, resistiram tanto à imposição religiosa quanto à dominação escravagista. Em 1835, no fim do ramadã, os malês — como eram chamados no Brasil — organizaram uma revolta em Salvador que, dada a pequena quantidade de revoltosos, foi brutalmente reprimida pelas forças do Império. Uma parte dos rebeldes foi executada, muitos foram deportados para a África, mas alguns poucos ficaram no Nordeste e se espalharam pelo sertão.
A residualidade cultural dos haussás islâmicos é pouco explorada nos estudos das influências desses resíduos na música nordestina. É possível estabelecer hipóteses de que a oralidade dos malês descambou em expressões artísticas nordestinas que invariavelmente são um dos frutos mais recentes nascidos do contato entre culturas tão distantes. Assim como já falado, Muezins (os chamados cânticos árabes para as orações diárias do islã) e instrumentos como os pandeiros (raqs), tambores ancestrais da zabumba (tabals), os agogôs etc constituem-se como um resíduo islâmico muito particular nas raízes da música nordestina.
“Resíduo é o que remanesce de cultura pretérita numa posterior”.[6] É com essa definição sucinta da Teoria da Residualidade, do professor cearense Roberto Pontes, que eu tomo ainda mais fôlego para tentar entender o que há de árabe no baião. Pensando nesse sentido, segundo Pontes, os resíduos de cultura manifestam-se de duas maneiras: na forma de atitudes mentais
de culturas imediatamente passadas ou temporalmente muito distantes; e através de “resíduos indicadores de futuros”[6], os quais estão de tal forma incutidos na mente dos artistas que, de forma espontânea — quase sem querer — aparecem em expressões musicais nordestinas de vanguarda, que diferenciam-se sensivelmente das do resto do Brasil.
Tudo é sertão para quem é do Nordeste. O barro seco do caminho até o sul-maravilha significou a trajetória derradeira da vida para milhões de nordestinos que fugiram da seca e da fome feroz que convivem conosco desde que o Brasil é Brasil. Está aí outra coincidência entre árabes, em especial os árabes-judeus, e os nortistas, que atiça a intuição de qualquer um que se debruce sobre o tema: os dois são povos migrantes, que guardam na oralidade a tônica para a manutenção de suas culturas. Na história dos êxodos, esses dois povos tentaram resistir às perseguições através da formação de comunidades organizadas em torno de signos e instituições comuns: religião, música, dança, culinária, indumentária etc.
Ainda hoje, comunidades árabes e judaicas possuem laços comunitários muito vivos nas cidades brasileiras, em especial no Recife, local onde foi fundada a primeira sinagoga das Américas, e em São Paulo, onde vivem as maiores comunidades dessas duas etnias no Brasil. Também são notáveis as tradicionais coletividades nordestinas no sudeste, Brasília e outras grandes capitais. Em ambos os casos, esses núcleos sociais sempre foram, e ainda são, centros de resistência, amparo e acolhimento.
Violeiros, romanceiros, repentistas, muitos deles metidos entre comerciantes e viajantes, filhos de colonos ibéricos, possuíam como público maior os meninos descalços, pobres e raquíticos que corriam entre suas pernas. Criança faz três coisas muito bem: br**ca, chora e imita. A música dos árabes, gente estranha aos olhos infantis, ficou na memória dos meninos arruaceiros que se encantavam pelas músicas, poesias e repentes. E, daí pra frente, inevitavelmente a cultura oral, representada pela palavra cantada, entra no seio familiar: histórias romanceadas viram ponto alto da fabulação e do lazer. As raízes culturais são um elemento geracional único de reconhecimento e autoafirmação. A cada geração, essas raízes, acrescidas a resíduos de outros povos ascendentes político e economicamente, cristalizam-se sob novas estéticas.
De alguma forma, a história trata de incitar a intuição de quem a lê. No meu Rio Grande do Norte há uma personagem recente que é o exemplo maior essa auto-elucidação da senhora história, bem como do fortalecimento da tese centrada neste texto. Militana Salustino do Nascimento, conhecida nacionalmente como Dona Militana, viveu seus 85 anos no seu sítio Oiteiro, em São Gonçalo do Amarante, e poucas vezes saiu de lá. É considerada por muitos a maior cancioneira do Brasil, que preservou uma tradição mouro-ibérica de 700 anos. Sua história está fincada no vigor inoxidável da oralidade.
Muito menina, a romanceira acompanhava seu pai, Atanásio Salustino do Nascimento, no nascer do sol no roçado, quando escutava-o cantar romances sobre reis, famílias antigas, guerras e cruzadas. Tinha um pedido cativo: “cante um pouquinho, papai”. Seu pai havia aprendido com seu avô, que havia aprendido com o bisavô, e assim por diante. A ela, pela sua condição de mulher, só era permitido ouvir aquelas histórias. Cantar, jamais. Passível de
surra, reprimenda do pai.
A memória de Militana foi o maior dos seus ativos, pois, apesar da casa de taipa, do cotidiano das lavouras, da pobreza, ela, na periferia das periferias, conseguiu manter viva uma tradição de oralidade nordestina porque ibérica e ibérica porque árabe. A preservação desses romances foi uma exceção à regra do esquecimento hereditário, mas uma raridade que prova que, apesar de toda perseguição e dilaceramento dos restos da cultura afro-moura-ibérica — principalmente aquela mantida por negros — , seus remanescentes fizeram-se altivos no Nordeste do Baião. Tem sido assim desde que a serra é serra.
Em Exu, cidade natal de Luiz Gonzaga, Seu Januário, seu pai, cuidava do roçado de um grande latifundiário, tocava e consertava acordeons — instrumento que não é propriamente mouro, mas que foi inserido na música árabe no começo do século XX. O rei do Baião aprendeu a tocar sanfona com seu pai. Tocava forró nos bailes, e por ter no seu subconsciente as ancestralidades ibéricas arraigadas, soava espontaneamente de maneira semelhante a um árabe, ao tocar zabumba ou sanfona. Ali, ele já escutava os primórdios do jazz. E Luiz Gonzaga juntou tudo isso e pariu o baião, o primeiro sucesso popular da música brasileira; para o Nordeste, o estandarte orgulhoso e atemporal do seu povo.
Referências:
1“Nem o samba é brasileiro”, Daniel Daibem.
2 Comunidade árabe é 6% da população brasileira, diz pesquisa, Câmara de Comércio Árabe Brasileira.
3“Belchior — MPB Especial (1974)”, TV Cultura.
4 Suassuna, Ar**no. “Apresentação”. In SOLER, Luis. As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino. Recife: Editora da UFPE, 1978.
5 SOLER, Luis. As raízes árabes na tradição poético-musical do sertão nordestino. Recife: Editora da UFPE, 1978.
6 PONTES, Roberto. “O medievo está aqui”. Revista Graphos, v. 19, n. 3, p. 198–208, 28 dez. 2017
Texto de Yuri Gomes
, estudante de jornalismo da UFRN.(ysgomes98.medium.com)