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O inferno segundo PorfírioCheguei atrasado à reunião de condomínio. Não era do sítio onde vivo mas sim doutro, do qual t...
26/01/2025

O inferno segundo Porfírio

Cheguei atrasado à reunião de condomínio. Não era do sítio onde vivo mas sim doutro, do qual tive de me encarregar devido a circunstâncias menos felizes. A conjugação das palavras “reunião" (que por si só já deixa a desejar) com “condomínio” (que embora seja um nome, neste caso até poderia funcionar como um epíteto) provoca em qualquer de nós uma reação adversa. Vêm-nos imediatamente à memória personagens e situações dos quais nos queremos esquecer mas, noblesse oblige e lá vamos nós, quais condenados aceitando o seu destino.

Como disse, cheguei tarde (mas ainda dentro da meia hora de tolerância por via do quorum). Ignoraram-me quando cumprimentei a Assembleia, fui buscar uma cadeira e sentei-me num canto da mesa, em silêncio. Em silêncio me mantive durante boa parte do decurso da reunião, absorvendo catarse alheia sobre a propriedade comum. Infiltrações, ordenado do Porteiro, aparelhos de ar condicionado, varandas fechadas, lugares de garagem, mola da porta da rua, assaltos, ruídos, painéis solares, estaleiros enfim, toda uma colorida paleta de assuntos e respetivos matizes.

Tudo seria simples, não fosse haver quem não ame a simplicidade. Quem valorize a criação de situações hipotéticas que não aconteceram mas podem acontecer. Quem goste de sentir-se no olho do furacão, arrastando todos os presentes para a sua desgraça. E lá estava ele, o Sr. Porfírio, porfiando com os demais, de olhos prestes a saltar das órbitas, visivelmente exaltado, afirmando que não concordava. E o energúmeno não concordava com nada! "Não concordo com os ares condicionados assentes na cobertura, não concordo com as varandas, não concordo com o alojamento local, não concordo com o seguro de partes comuns, não concordo com os assaltos, não concordo com os painéis solares!" Nada de nada!

O Sr. Porfírio, homem de estatura média, olho vesgo e ar cinzento, passaria despercebido em qualquer escritório de mangas de alpaca com os seus três fios de cabelo. Mas ali, longe do seu habitat expectável, revelava o seu lado lunar em toda a sua glória. Parecia rodeado de uma auréola vermelho vivo de ira e havia um leve aroma de enxofre no ar! Aquele era o seu reino e ele não estava disposto a ceder! Ele era dono e senhor do nosso tempo e da nossa atenção! Não tinha direito a veto mas dava-se o direito de vetar a paciência do próximo!

O Sr. Porfírio é um homem que precisa de palco mas tem dificuldade em arranjar público. É um homem que lê muito, desde jornais a instruções de eletrodomésticos, passando por contratos de seguradoras e placas de autoestrada. Todos o evitam pois ninguém tem categoria para discutir ao seu nível. Por isso vê-se obrigado a encurralar os néscios (adjetivo com que caracteriza todos os que o rodeiam), seja em prolongadas reuniões de condomínio, em balcões de café ou até mesmo em viagens de elevador. Sempre na luta pelo ideal e na tentativa de viver no condomínio perfeito, tenta pregar a clarividência. Aqui e ali, alguns néscios chegam mesmo a usufruir da sua luz, mas apenas durante o tempo em que é apontada pelo Sr. Porfírio. Mal o dedo recolhe ao punho, a luz desvanece e o inepto retorna ao seu estado natural. "Trabalho de Sísifo", diria ele.

Calculo que se queixe de tudo, desde a baixa política até à chuva nas alturas. Tudo é inferior, tudo é mal feito, nada está como devia. Em lago de mediocridade, o Sr. Porfírio é ilha solitária e protuberante. Um verdadeiro repositório de sageza. Carrega nos ombros o peso da responsabilidade de andar neste mundo para apontar os incontáveis erros que os demais cometem.

A avaliar pela postura que adota quando fala, o Sr. Porfírio deve julgar-se dono de um charme irresistível e de uma personalidade magnética, capaz de atrair até seres inanimados como as estátuas dos jardins ou as pedras da calçada. Consegue antever um problema a milhas e que ninguém o tente convencer de que, embora longínquo, se trata de uma hipótese remota, “Eu é que sei” está claramente no topo das suas afirmações preferidas.

No fundo, o seu sonho de carreira era tornar-se administrador plenipotenciário do condomínio e pavonear-se nos elevadores, de mãos atrás das costas, olhar enigmático e atitude predatória. Estou seguro de que o faria às primeiras horas da manhã e também ao final da tarde, para apanhar os incautos no flagrante delito de existirem e aborrecê-los até à morte.

Porfírios deste mundo, ide todos viver no mesmo edifício e sede felizes nesse vosso pequeno paraíso! Desisti de nós e deixai-nos perdidos, vagueando por condomínios sombrios e mal geridos, onde toda a sorte de bizarrias convive com uma miríade de pilha-galinhas e demais gente de baixa estirpe, capaz de marquises, painéis solares, ares condicionados e outros atentados.

Porfírios deste mundo, tende misericórdia de nós, concedei-nos a paz!

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