14/01/2020
NÃO TEM PREÇO!
A despeito de toda a desconfiança e descrença que a Humanidade desperta em nós nos dias de hoje, tenho que contar aqui um episódio que fez renascer em mim a esperança no ser humano. Na partida para Banjul o voo atrasou-se cerca de 4 horas. Entediada com as longas horas de espera, tirei o computador da mochila, resolvida a trabalhar um pouco. Meia hora depois, a hospedeira avisou que deveríamos seguir para o portão de embarque, foi um corre-corre automático, ninguém estava preparado.
Na pressa de arrumar as coisas, saí da minha rotina. Em vez de colocar o computador na mochila, guardei primeiro o cabo de alimentação. Resultado: deixei ficar o computador entre as cadeiras do aeroporto e nem me apercebi! A ausência da máquina só foi sentida horas depois em Addis Abeba, quando me quis «conectar» no hotel onde pernoitámos durante o período de escala.
A notícia teve, claro, um efeito devastador e os colegas de jornada logo se aperceberam do meu desânimo. Quando começava a acreditar que a viagem estava estragada, eis que o «salvador da pátria» chega via Internet. Numa das vezes em que encontrei vago o concorrido, e único em funcionamento, computador do hotel, entrei no Messenger para tentar avisar a família para que se procurasse recuperar o instrumento.
De repente um contacto desconhecido, que para preservar a sua privacidade vou chamar aqui de Miharbi, começou a teclar comigo. Para minha surpresa, o rapaz em questão tinha encontrado o meu computador, desbloqueado a minha senha, entrando nele, e tinha-me adicionado aos seus contactos. Todo este trabalho para me encontrar e devolver a máquina.
Ainda pensei que fosse alguma brincadeira, mas não era, como vamos ver mais à frente. A viagem continuou aos trancos e barrancos, como explicarei melhor na próxima semana. Depois de Addis Abeba chegámos a Bamako, onde depois de cerca de duas horas atribuladas, seguimos para Banjul. Já vínhamos moídos depois de atravessar o continente duas vezes. Nem reparamos como deve ser na decoração tropical do Laiko Hotel, o primeiro passo foi tomar um banho e comer.
Foi aí que a Maria se deu conta do desaparecimento dos seus óculos.
Procurámos em todos os cantos possíveis do hotel, revirou-se o táxi, mas os óculos continuaram desaparecidos. Aliás. até agora.
Depois de comermos os «fish and ships» já desanimados, trocámos duas ou três palavras e cada um retirou-se para o sossego do deu quarto. A intenção era clara: recarregar baterias para os dias de trabalho intenso que estavam por vir e que iam começar já no dia a seguir. Foram realmente exaustivos os dias que se seguiram. Nos três primeiros dias, em que decorreu o Fórum das ONGs, saíamos do hotel de manhã cedo e só voltávamos no início da noite.
O facto de o Fórum ter sido realizado num hotel a cerca de 40 minutos do nosso também não ajudou. Quando o trauma da perda começava a amainar entre nós, eis que surge mais um abalo. Outra vez a Maria, coitada. Ela tinha ido à «Senegâmbia», zona turística perto de Banjul, festejar o aniversário de uma das colegas, também defensora dos direitos humanos. Na viagem de volta, cansadas, as duas adormeceram e só acordaram quando chegaram ao nosso hotel.
Tinham vindo num dos táxis amarelinhos em vez de um dos verdes, mais seguros. Resultado: até hoje permanecemos na dúvida se o telefone caiu e o motorista simplesmente não o quis devolver ou se ele tirou mesmo o telefone da bolsa alheia. Até se procurou pelo dito cujo, foi-se à polícia, apresentou-se queixa, mas nada. A próxima vez que for à Gâmbia já sabe: evite táxis amarelos!
Duas semanas depois do início desta aventura, estávamos de volta a casa. Refazer a rota louca de escalas a este e oeste deixou-nos “down”, como diriam na Gâmbia. A história do computador afinal não era mesmo brincadeira. Assim que cheguei, Miharbi devolveu-me o «lap top» em perfeitas condições e reagiu indignado quando lhe quis dar um presente (em espécie) como forma de agradecimento. «Não aceito dinheiro por favores», disse ele. Inspirando-me numa campanha publicitária que vi algures, arrisco-me a dizer que «computador portátil, 1000 dólares em dinheiro, cheque ou cartão, mas uma atitude honesta dessa magnitude: não tem preço!».
Crónica extraída do livro "Miopia Crónica" de Aoaní d`Alva