14/02/2024
„We have the chance to turn the pages over
We can write what we want to write
We gotta make ends meet, before we get much older
We're all someone's daughter / We're all someone's son
How long can we look at each other /Down the barrel of a gun?
You're the voice, try and understand it /Make a noise and make it clear
We're not gonna sit in silence / We're not gonna live with fear...“
„The Voice“, John Farnham (1986)
Há exatamente 3 anos, num post muito pessoal, comentei as origens históricas do dia de hoje: o "Dia do Amor e da Amizade", mais conhecido como "Dia de S. Valentim". Um movimento bem sucedido do cristianismo primitivo, e depois da Igreja Católica, para usar a execução de Valentinus - opiscopus (bispo) - de Terni, a 14 de Fevereiro, algures durante o reinado de Gallienus, 253 - 268 AD em Roma. A morte de um dos primeiros mártires da História serve para erradicar os antigos rituais de purificação e de fertilidade no âmbito das celebrações pagãs em vigor durante os séculos do Império Romano: segundo a mitologia romana, na gruta Lupercal - e à sua volta -, casa do deus-fauno Lupercus, no sopé do Monte Palatino, uma mítica loba amamentou os futuros fundadores da "Cidade Eterna": Rómulo e Remo (Auuu...!). Em homenagem a este facto, surgiu a festa pagã chamada "Lupercalia", que atraía à famosa gruta todos os que nela quisessem participar, independentemente do s**o ou da classe social. Isto porque o evento teve lugar numa época em que as mulheres, pelo menos durante algum tempo, tinham liberdade de movimentos e participavam mais ou menos ativamente na vida social dos seus cônjuges, aos quais estavam ligadas por um contrato verbal acordado entre as famílias de ambas as partes. Não havia cerimónia de casamento propriamente dita. E o melhor: se o casal decidisse divorciar-se por qualquer motivo, bastava manifestar a sua vontade de o fazer. Os divórcios, no entanto, não eram muito comuns, uma vez que o homem teria de devolver à família da noiva/esposa a totalidade do dote.
Estas práticas são o oposto da tão admirada Grécia clássica, berço do "governo do povo" (dēmokratía): as mulheres eram menos do que o "0" matemático à esquerda, estavam ao mesmo nível que os escravos na pirâmide social da época, tinham de nascer e crescer até à "idade núbil" (14 - 15 anos) dentro das 4 paredes de casa e só saíam desta "prisão" doméstica na companhia de um membro masculino da família. Também não tinhan direito a qualquer tipo de educação. As únicas não analfabetas da Antiguidade eram as hetairai, prostitutas de alta categoria que podiam subir na hierarquia e até participar ativamente nas assembleias e simpósios das respectivas poleis (cidades-estado). As prostitutas comuns - pornai - eram, tal como as senhoras da alta sociedade, incapazes de ler ou escrever. Parece-lhe familiar? Claro que sim! Uma das religiões mais restritivas do mundo continua a ver a mulher como um "mal necessário", a subjugar permanentemente, privando-a dos meios necessários à sua realização pessoal e profissional. Agora já sabe porque é que, em 2012, um extremista religioso tentou assassinar uma estudante paquistanesa, disparando contra ela à queima-roupa com uma pi***la de calibre 45, quando ela e algumas das suas colegas regressavam da aula. Na visão obtusa de há 3000 anos deste homem, uma mulher instruída é uma ameaça à ordem estabelecida. Felizmente, ao sobreviver, a extraordinária Malala Youzafzai torna-se talvez a jovem mais admirada do nosso tempo. Também por mim. Bravo, Malala!
Se me alonguei neste texto mais do que feminista - humanista, de fato - é porque, tal como em anos anteriores, o "Dia dos Namorados" já me dá enjoo há muito tempo! Como referi na nota de 2021, é por culpa de um publicitário inglês que criou os chamados "Valentine Papers" em 1797 que este dia tomou o rumo que tem hoje. O que começou com postais com versos e motivos amorosos orientados exclusivamente para pessoas heterosse***is, transforma-se num conjunto quase vomitável de objectos, mensagens e campanhas sem qualquer relação com o sentido original e a verdadeira natureza da celebração (mesmo para mim, que me gabo de ser uma romântica incurável e antiquada, do tipo Jane Austen, Emily Brontë e Lope-de-Vega juntas!)
Sabia que dos mais de 100 milhões de rosas que são oferecidas todos os dias 14 de Fevereiro no mundo, 40% crescem graças à exploração do trabalho das mulheres no Quénia? Mulheres e crianças que também têm de sofrer as consequências da falta de água nos reservatórios para a população local, porque essa água é indispensável para a irrigação das plantações de rosas? E não é só no Quénia...
Sabia que nem sequer por um dia milhões de crianças, mulheres, membros de minorias se***is e/ou religiosas no mundo podem aspirar a um tratamento digno, a cuidados básicos de saúde, a uma alimentação equilibrada, ao respeito ou a um mínimo de afeto, porque TODOS OS DIAS há algum tipo de violência contra eles. Violência que, se não lhes põe fim à vida, deixa-lhes profundos traumas físicos e psicológicos até ao fim das suas vidas. Um relatório da ONU revela que se estima que mil milhões de mulheres e crianças em todo o mundo são vítimas de violência sexual e/ou doméstica todos os anos.
Por esta e muitas outras razões, em 14 de fevereiro de 2012, Eve Ensler, ativista americana famosa pelo polémico "Monólogos da Va**na" (1998), decidiu lançar a campanha "One Billion Rising". Desde então, e sobretudo através de apresentações culturais, também hoje, em Berlim e em dezenas de cidades de todo o mundo, uma poderosa voz de protesto ergue-se no ar para sensibilizar a sociedade em geral e canalizar a atenção do mundo para os verdadeiros problemas que nos afectam.
Os protagonistas do movimento "Flower Power", nos anos 60 defendiam "make love not war". E não somente no "Dia dos Namorados" e não apenas por um dia. Fazer mais amor ou apenas ter uma relação sexual em vez de ir diretamente para as armas? Claro, mas de uma forma responsável, respeitosa e humana?
Mostrar mais empatia, mais afeto, mais respeito não é difícil. Basta querer.
P.S.- Com exceção das imagens com citações de Malala e Frida Kahlo, todas as fotografias são da minha autoria. No entanto, declaro que as fotografias de duas das obras do extraordinário artista TOBO em Berlim foram tiradas com o consentimento da Street Art Gallery Teufelsberg.