17/08/2015
Um pedacinho do Q de criativo, às quartas ao final da tarde no Q
O tema da quarta feira passada foi o efémero, pois ainda não fechámos e já estamos com saudades!
"O efémero pressupõe a tangível proximidade do fim de uma experiência positiva. Não dizemos que uma doença foi efémera, ou que o barulho foi efémero. É habitualmente com um travo de pesar que nos referimos a um evento como efémero, pelo seu carácter transitório, pela duração relativamente curta de um determinado estado de coisas.
O efémero é uma mistura granulosa, possui uma textura simultaneamente áspera e suave.
Em oposição ao efémero, aparentemente, temos aquilo que é permanente. Só que, nada é permanente. A permanência é ilusória, apenas existe num contexto relativo. A única constante verificável é a qualidade efémera de todas as coisas. Na verdade, o real contraponto ao efémero é a criatividade.
Apenas a ocorrência da criação contrapõe o vazio gerado pela consumação do efémero.
A capacidade criativa manifesta-se num plano sem dimensão temporal. Acontece. Brota do mistério como uma língua de erva. Curiosamente, é ela que gera a singularidade, o acontecimento efémero.
O acto criativo é, ao mesmo tempo que uma resposta, o evento gerador de uma nova questão.
Deste movimento resulta um processo evolutivo no qual as questões relacionadas com a procura do conhecimento se tornam intrinsecamente ligadas ao auto-conhecimento.
Naturalmente, a primeira reacção ao efémero é a da recusa.
A consciencialização implícita à percepção do efémero origina, num outro plano, uma veemente oposição de valores. Numa fase inicial, o instinto de sobrevivência sobrepôe-se a quaisquer considerações. A necessidade da preservação da espécie. O imperativo da transmissão de um legado. O desenvolvimento da noção de território, propriedade, património, identidade...
A energia criativa direccionada no combate ao efémero.
Simultaneamente, no entanto, abre-se caminho para uma aceitação. Através, por exemplo, das várias formas de arte performativa, o gozo, a contemplação, o fruir do devir. Mas também, de outro modo, a entrega a uma certa indiferença, a um abandono, uma alienação direccionada para o consumo. Não importa realmente o estado de dependência a esse consumo, nem exactamente qual o produto comburente, a plena aceitação do efémero pode tornar-se uma chama sem sombras, que se auto-consome.
A tendência natural para um estado de equilíbrio obriga-nos a uma dinâmica de escolhas. As mãos entregues ao leme da incerteza. Os passos em volta, numa roda de probabilidades.
Este é, por excelência, o terreno do efémero. Instável, na vertigem de ser. Produzindo artefactos que ardem para dentro. Máquinas adormecidas que dançam, sonâmbulas, a música dos números.
Percepcionar o efémero é acordar por um instante."
texto de José Machado (ceramista e artista)
ilustrações de Filipe Coelho (em baixo) e Paulo Montes (em cima)