04/09/2018
A natureza e o reconhecimento dos direitos da personalidade
Nancy Dutra
Publicado em 04/2008. Elaborado em 04/2008.
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DIREITO CIVILDIREITOS DA PERSONALIDADE
Resumo: Para que fosse possível ao indivíduo a observância de um regramento organizador da sociedade, o Estado teve também de proteger elementos intrínsecos à própria natureza humana, como a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica, a igualdade e a identidade pessoal, pressupostos para o exercício dos demais direitos previstos no ordenamento jurídico. No Brasil, a Constituição Federal de 1988 erigiu a dignidade da pessoa humana como fundamento da República, sendo os direitos que materialmente emergem dele tomados como individuais fundamentais, na esfera do direito público, e como direitos da personalidade, em âmbito privado. Em 2003, com a entrada em vigor do novo Código Civil, a disciplina dos direitos da personalidade passou a ser realizada também por legislação infraconstitucional. A natureza destes direitos, por tratarem de características inatas ao ser humano, pode ser explicada tanto pela teoria jusnaturalista quanto sob a ótica jurídico-normativa do positivismo.
O homem, enquanto ser social, depende do convívio com os seus semelhantes para a viabilidade de suas ações. A vida em sociedade é necessária, conseqüentemente, para a manutenção de nossa própria sobrevivência, uma vez que os interesses e necessidades dos indivíduos são satisfeitos com a troca de serviços, bens ou informações. Desde as primeiras civilizações até a atual sociedade capitalista e consumista, os homens travam relações econômicas, negociais, políticas, culturais e familiares entre si para a exeqüibilidade de suas existências em relação aos demais indivíduos e à própria natureza.
Para a possibilidade da vida em sociedade, contudo, fez-se preciso o estabelecimento de regras de conduta. As iniciativas humanas não poderiam ser determinadas unicamente pela vontade de cada um, sob pena de não prosperar a ordem indispensável para a predominância da estrutura social. As regras que se fizeram forçosas, para que fossem aceitas por todos, deveriam provir do ente possuidor de legitimidade para tal. A autoridade do definidor das regras, em razão do poder detido, sempre foi aspecto fundamental para a imposição e respeitabilidade das normas. A tarefa de legislar, apesar de já identif**ada ao longo da história da humanidade com o chefe familiar, com o líder religioso ou com o monarca absoluto, mostra-se no mundo ocidental de hoje, desde o advento do Iluminismo europeu, confiada ao Estado de poderes tripartidos.
O Estado, na condição de instituto destinado à organização da sociedade e ao oferecimento do bem comum, tem como um de seus deveres a produção das normas jurídicas determináveis a todos. Em um Estado Democrático de Direito, são existentes, válidas e ef**azes todas as normas produzidas concordantes com a Constituição, Lei Maior resultante da vontade social tanto de definir parâmetros a serem seguidos pelas autoridades no exercício de suas atividades como de assegurar interesses gerais e garantias consideradas fundamentais para a convivência dos indivíduos em sociedade.
Todo o conjunto normativo desenvolvido pelo Estado, todavia, só tem razão de ser a partir do momento em que se considera objeto de tutela jurídica a proteção de elementos intrínsecos à própria natureza humana. Nesse sentido, a vida, a liberdade, a integridade física e psíquica, a igualdade e a identidade pessoal são alguns dos pressupostos para o exercício dos demais direitos previstos em nosso ordenamento jurídico. Ainda que não presentes tais elementos em textos legais, não se pode negar sua existência dentro da esfera das condições naturais do ser humano. Tais características, inatas ao homem, ao receberem tutela estatal, são providas de recursos de proteção e elevadas à categoria de direitos positivados, fatos que representam uma das preocupações primordiais do Estado Democrático de Direito. Destarte, a este cabe apenas reconhecer e declarar a realidade desses direitos e não os constituir, uma vez que não provêm do ato normativo estatal, mas do contexto natural que envolve o homem como mais um de seus elementos.
A garantia da tutela estatal desses direitos considerados intrínsecos à natureza humana se manifesta tanto no conteúdo dos chamados direitos individuais fundamentais, tratados pelo Direito Constitucional, como dentro da matéria dos Direitos da Personalidade, instituto de construção doutrinária trazido em capítulo específico pelo Código Civil brasileiro de 2002. A concessão de força jurídica a esses direitos pelo Estado visa a que o indivíduo disponha de condições mínimas para cumprir e se beneficiar das demais normas. A expressão em texto legal desses direitos considerados primordiais, além da demonstração do reconhecimento do Estado, confirma o compromisso deste em protegê-los com o seu poder de tutela dos bens da vida mais relevantes.
A tutela dos direitos individuais da pessoa humana deu-se inicialmente pela esfera pública, como resultado das lutas liberais revolucionárias do século XVIII. O ideal burguês de liberdade e de não interferência do Estado nas relações entre particulares fez emergir as declarações de direito norte-americana e francesa, que consagravam a proteção dos chamados "direitos fundamentais" ou "liberdades públicas". Vê-se, portanto, que a abrangência legislativa das garantias individuais, entre estas os direitos da personalidade, teve seu começo no campo do Direito Público, por meio da tutela constitucional e, em alguns casos, da penal, dado o grande valor dos bens da vida objetos de proteção estatal.
No âmbito do Direito Privado, somente a partir dos séculos XIX e XX a tutela dos Direitos da Personalidade ganhou forma, visando à proteção da pessoa não em face da ingerência estatal, mas em relação à interferência de todos os demais particulares. Frente ao crescente desenvolvimento do conhecimento técnico-científico, financiado pelo capital privado, e ao conseqüente risco de lesões à individualidade física, intelectual e moral da pessoa em nome da ciência, o resguardo dos atributos personalíssimos exigiu a extensão da esfera protetiva para também o campo privado.
Constitui a personalidade a capacidade abstrata do indivíduo de possuir direitos e contrair obrigações na ordem civil. Os Direitos da Personalidade, extensão privada da garantia dos direitos individuais, são oponíveis erga omnes e essenciais ao resguardo da dignidade humana. Caracterizam-se também por serem universais, absolutos, imprescritíveis, intransmissíveis, irrenunciáveis, impenhoráveis e vitalícios, pois se apresentam impassíveis de limitações ou restrições, ainda que voluntárias. Carlos Alberto BITTAR, quanto às características desses direitos, acentua que
com efeito, esses direitos são dotados de caracteres especiais, para uma proteção ef**az à pessoa humana, em função de possuírem, como objeto, os bens mais elevados da pessoa humana. Por isso é que o ordenamento jurídico não pode consentir que deles se despoje o titular, emprestando-lhes caráter essencial. Daí, são, de início, direitos intransmissíveis e indispensáveis, restringindo-se à pessoa do titular e manifestando-se desde o nascimento (BITTAR, 2004, p. 11).