Não são de pedra estas casas mas
de mãos. in “As mãos”, de Manuel Alegre
Tal como o poeta afirma, também esta Casa não é de pedra, ou de ferro, ou de cimento. É, acima de tudo, feita de mãos. Das mãos que, há já quase cem anos, a construíram e depois a passaram para a nossa família. Casa onde vivemos juntos durante mais de duas décadas. Mas, afinal, como se distingue esta Casa das outras? Em p
rimeiro lugar, pelos cheiros: aqui conheci o aroma inefável do bolo de ananás, da torta de laranja, dos biscoitos fritos, das bolachas de manteiga e das “rosas do Egito”, especialidades da mãe. Aqui, fumegavam as panelas de cobre, quando se faziam as compotas de uva, de amora e de groselha. Aqui, senti o cheiro inebriante do incenso, da mirra, do alecrim e do benjoim, quando se queimavam no turíbulo, aquando da passagem da procissão do Sagrado Coração de Jesus, no sempre florido mês de junho. Em segundo lugar, pelas memórias auditivas que, à medida que as atualizamos, se tornam cada vez mais nítidas, porque filtradas pela saudade. Por isso, evoco aqui os noticiários da então Emissora Nacional que, à hora do almoço, ouvíamos, todos juntos, num belo rádio, último modelo da Philips; recordo o bater solene e eclesiástico da “Avé-Maria”, anunciando todas as horas e os seus segmentos, num relógio de parede da marca portuguesa “Reguladora”; relembro o retinir agudo e sempre sobressaltado do maciço telefone preto, ou o ruído bom e ritmado da máquina de costura Singer da mãe, enquanto, para mim, fazia um “fato de cowboy”, ou de “sevilhana” para a minha irmã, nos belos carnavais da nossa vida, e trarei sempre na lembrança as cassetes áudio e os vinis dos Pink Floyd, dos Dire Straits, dos Police, dos U2, do Rod Stewart, do Eric Clapton, dos Queen, dos UHF, dos GNR, do Rui Veloso e, num registo Heavy Metal, os inesquecíveis AC/DC, os Kiss, ou os Scorpions, entre muitos, muitos outros, que me ligaram para sempre ao mundo, apesar de viver numa ilha! Finalmente, esta Casa é diferente de todas as outras pelo seu visual: os coxins de veludo amarelo, vermelho e azul, da sala de visitas; a coleção de pratos, tigelas e terrinas com couves, lagostas e lagostins da fábrica “Bordallo Pinheiro”; a interminável coleção de garrafas de licor em miniatura do pai e as plantas, todas as plantas do mundo, como as “espadas de São Jorge”, as urtigas de cores inflamadas, as avencas, os fetos, as “costelas-de-adão”, entre dezenas de muitas outras, todas primorosamente cuidadas pela mãe. Mas, acima de tudo, estão as paredes desta casa: sempre com pintura renovada, sempre acompanhando a moda, ficam aqui e agora diversos vestígios arqueológicos: o seu “falso papel de parede”, em que se destacam motivos florais pintados a branco, sobre um fundo verde, e o revestimento das casas de banho: um em vinil, porque duradouro e de baixo custo, o outro em cerâmica legítima: quadrados, em tons de verde, para as paredes; retângulos, em tirinhas de cor castanha, para o chão: tudo combinava, tudo surgia dentro de um equilíbrio, de uma harmonia e de um gosto pela beleza da simetria que ninguém punha em causa. Por tudo isso é que esta Casa é inigualável e não pode ser confundida com nenhuma outra. Por tudo isso é que ela resistiu e moldou-se aos tempos modernos. Sempre na família para acolher outras famílias e visitantes do mundo, interiorizou a riqueza das suas memórias e adotou um novo visual: mais ágil, mais flexível, mais colorido, mais dinâmico e mais ecológico! Assim, todas as lâmpadas são de LED e algumas têm controlo energético automático, os produtos de limpeza são biológicos, os eletrodomésticos respeitam o consumo mínimo de energia e as mobílias foram construídas, reutilizando a madeira das paletes que transportam mercadorias dos quatros cantos do mundo para São Miguel, com as nossas mãos. Sim, foram as minhas mãos e as da minha mulher que moldaram, num labor árduo e contínuo, mas feito com carinho e desvelo, os principais móveis e peças decorativas desta casa. Por isso, apenas esperamos que os gozem com respeito, cuidado e zelo, porque são únicos e, enquanto estiverem na Casa das Mãos, são, também, vossos. Queremos, assim, que esta Casa continue a ser testemunha de belos e inesquecíveis momentos que aqui, e na nossa ilha, certamente experimentarão. Somente esta Casa, com uma longa e feliz história de vida, pode revelar o verdadeiro significado das palavras intimidade, conforto e bem-estar: no rés-do-chão, prestamos homenagem à música, como forma suprema de atingirmos a plenitude humana; no 1.º andar, evocamos a nossa geografia de terra e de mar que nos condiciona, mas que, por isso mesmo, nos obriga a sonhar e a querer sempre mais; reservamos o último andar para a curiosidade e o riso fácil da juventude, ou para a placidez e as horas calmas da maturidade! Para tal, têm, à vossa disposição, no balcão da Casa, aliás o meu antigo quarto de cama, um espaço de lazer ou de reflexão, com a certeza de que a Mão ali presente, que não é mais do que a minha própria mão, construída por mim numa escala de 1 por 5cm, será, sempre, a guardiã segura e afetuosa das vossas conversas, leituras e pensamentos!! Sejam muito bem-vindos à Casa das Mãos: as minhas, porque aqui passei de menino a homem e senti o dever de a reinventar; as da minha mulher, companheira de todas as horas e ancoradouro de todos os meus sonhos, e as da minha filha, esperança plena da continuidade desta tão bem-amada Casa! Esta é a Vossa Casa das Mãos, porque as mãos foram feitas para trazer o futuro e para exercitar a nossa vocação presente de bem acolher e de bem receber!