16/01/2025
TORRE DO RELÓGIO
Uma bela estória associada a esta torre! Ou será mesmo história?
Completando a notícia a respeito da antiga vila do Sabugal, intra-muros, digamos algumas palavras acerca da torre chamada actualmente do relógio, e que se tornou célebre por causa do notável poeta e capitão Brás Garcia de Mascarenhas.
A torre f**a perto da praça, encostada à velha muralha que cercava a vila, onde existe a tosca escadaria que lhe dá acesso. F**a a leste da antiga povoação, junto de uma das entradas desta, sobrepujando o arco o escudo das quinas encimado pela coroa real, entre duas esferas. Em frente desta porta dizem ter existido outra, aberta noutra muralha.
A torre é elevada, e sobre ela foi alçado um campanário de uma só ventana, onde se vê o sino do relógio, que há muitos anos ali existia e que foi substituído por outro em 1906.
Os andares da torre eram de madeira, de que não restam vestígios, tendo um deles, o superior, acesso pela porta aberta na face ocidental, um pouco acima do nível da muralha, onde existe a escadaria de que já falámos.
O rés-do-chão tem acesso por uma pequena porta em arco, tão baixa que uma criança de 10 anos terá de se curvar para passar por ela.
Diz-se que nesta torre esteve preso muito tempo o autor do Viriato Trágico, Brás Garcia de Mascarenhas, natural da vila de Avô e chefe da Companhia dos Leões, fundada em Pinhel, e que por altos serviços prestados à pátria, fora nomeado governador da praça de Alfaiates, que f**a a 18 quilómetros pouco mais ou menos do Sabugal, perto da fronteira de Espanha.
Sucedendo ter entrado em Portugal um troço de cavalaria e gente armada, e não obstante ter ordem do governador da província, Sancho Manuel, para não sair da praça, certo é que, ou por conselho ou ordem de Fernão Teles, governador do distrito, ou por impulso natural, perseguiu o inimigo e tomou os gados que este roubara nas povoações portuguesas da raia e levava para o seu país.
Despeitado por tão glorioso feito, não perdeu o referido governador ensejo de o perseguir e castigar, envolvendo-o numa intriga vil e acusando-o injustamente de ter correspondência com o governador de uma praça espanhola, de apelido Caracau, ou Macacau, segundo outros, e de assim trair a sua pátria.
Não lhe valeram protestos, e em breve era enclausurado na torre de que nos estamos ocupando, por ordem de Sancho Manuel, onde esteve incomunicável. O engenhoso poeta julgou-se perdido, e teria morrido de fome e desgosto, se uma ideia luminosa lhe não viesse à mente atribulada pelo procedimento do seu perseguidor.
Pediu um livro para se entreter na triste, medonha clausura, e foi-lhe enviado um FIos-Sanctoram - por ser o que mais convinha a quem estava em tão crítica situação e tão perto da morte, pensaram os seus algozes, mal suspeitando o engenhoso intento do valente capitão.
Apenas de posse do precioso livro, não se entreteve a ler a vida dos santos varões, que a igreja canonizara, mas a cortar as margens das folhas do livro, onde depois de unidas, formou uma grande tira de papel, na qual compôs uma carta em verso aproveitando palavras do livro e cortando letras para formar outras que ia colando no papel com massa feita com o pão que lhe davam.
Concluída tão engenhosa quanto original epístola, conseguiu entregá-la a uma sentinela, também de Avô, lançando-lha por uma seteira da torre, em cruz, como as da cidadela, sendo enviada ao irmão do poeta.
Reinava então em Portugal D. João IV, a quem quarenta homens, que foram quarenta heróis, levaram a ser rei.
El rei recebeu a carta, e ficou tão surpreendido e admirado pela engenhosa lembrança e defesa feita pelo poeta, que ordenou ao seu secretário de Estado, Francisco de Lucena (1), que mandasse vir o preso à sua presença.
Chegado à presença de el-rei, este ouviu-o atentamente; e reconhecendo, pelo que lera na carta e de viva voz lhe disse, que fora vítima da mais feroz injustiça, não só o condecorou com o hábito de Avis, como também o restituíu ao governo da praça de Alfaiates, nomeando-o, além disso, inspector de cavalaria.
Pena é que tal carta não chegasse a nossos dias, pois seria um documento valioso, não só para demonstrar o talento do poeta, mas também para evidenciar como naquela época se praticavam tão cruéis injustiças.
Infelizmente, porém, nem cópia jamais logramos ver desta carta, cuja existência é atestada pela tradição oral no Sabugal e confirmada também pela tradição escrita.
Nada há mesmo que possa pôr em dúvida este episódio da vida do poeta, tanto mais verosímil quanto é certo ter existido o facto que lhe deu origem.
Talvez ainda venha a esclarecer-se mais o assunto, de modo que não fique com foros de lenda este episódio, como alguns cépticos e respeitáveis críticos pretendem considerá-lo, sem darem valor à tradição oral e escrita.
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(1)- Em 1642 foi Francisco de Lucena decapitado como traidor à pátria.
📗Joaquim Manuel Correia, no seu livro de 1900 «Terras de Riba-Côa – Memórias sobre o Concelho do Sabugal»